VEREDA INTERIOR (ELDER ROCHA LIMA)

José Leme Galvão Jr.

Tentei, mas foi impossível falar só da obra, por si só carregada de essências objetiva e subjetiva. Mas e o artista? Nele a subjetividade permeia até os atos mais francos e comezinhos. Se há alma ela é essa essência subjetiva e a razão de ser do artista, ainda que por fim só a obra permaneça. É essa essência subjetiva que garante a vida objetiva, nos vãos e finas camadas onde futuro se revela como passado. O presente não constitui espaço, ocupado em seu ofício de vácuo colante. Nada é mais perfeitamente laminado e entranhado e nesse lugar constituímos a infinitesimal matéria de que consiste a vida. Somos lâminas anfractuosas, sombras perfeitas que habitam o eterno limiar entre o passado e o futuro. Mas a dádiva da memória nos permite viver voltados para o passado e pretender que exista um futuro. Sim, haverá, há o futuro, sempre na forma de um passado poderosamente secreto, aqui e ali nos fazendo crer que sagrado, inexorável.

Diante desse mistério, quase sempre delicioso, arrisco aqui apontar algum perfil da misteriologia pessoal do Elder. Quem és tu? Perguntamos com a única certeza de que a mesma pergunta será a resposta. Vamos a ele.

Nem é por ser uma “esfinge a ser decifrada”, creio que não seríamos devorados, mas essa é uma condição/exposição que concede, mas também consome. Creio que necessária para compreender artistas e sua arte, embora seja impossível compor sínteses inteiras. E é sempre arriscado se aproximar demasiado das fundações imateriais pessoais.

Desenhista, paisagista, impressionista, expressionista ou qual “ista”? Concluo que o Elder é um humanista. Como aprendiz procurei ler seu instrumental das superfícies, tintas, penas e pincéis – mas também, além da tela, além da obra, os modos de descrever e legar visões de mundo. O que (me) importa menos é a sequência histórica e mais a consequência – um enorme mosaico luminoso e transparente. Um olhar bom, ético, estético, belo – em uma estrutura de renascimentos pessoais no conjunto das obras na obra. E a estrutura que a sustenta tem muitos componentes do fazer artístico, da pessoa portanto. Aponto alguns:

Apreço e lealdade à beleza da paisagem, visível na natureza de gaia e dos rostos – composta em planos lisos e rugas, nas ilusões de movimentos fluidos, conjunto fractal e universal. Claro que se trata da paisagem planaltina, sertaneja (e sertanejos) – cerratense. A que fundou sua pessoa, de antes apenas menino-gente, desde a enorme importância dos lambaris para integrar-se socialmente à humanidade, para além dos regaços materno e paterno. Quem quiser saber sobre lambaris como rito de passagem, peça a ele para contar. Há, evidente, outros ritos mais considerados e potentes, das descobertas sexuais, geométricas (é pura épura ou má temática?), das perdas advindas das conquistas e todo o aparato consabido, logo parco de misteriologia. Aqui só me ocorre o mistério dos lambaris.

Dedicação à estética, aos tons e espessuras das cores, aos espaços que se vê em voos de pássaro (nossos melhores sonhos infantis), de dentro para fora das janelas, ou as próprias janelas, às expressões dos rostos e rimas humanas – nossas combinações limitadas nos fazem semelhantes. É coirmã da ética e o exercício cada vez mais apurado de ambas traz qualidades que se pode sentir na obra e, claro, na pessoa. Presenciar obras assim contém sensações de autenticidade, de potência representativa, do vigor que nos assiste desde as artes rupestres. Aqui só me ocorre o mistério da vontade que crispa a nuca dos artistas.

Afeição aos retornos, por não desistir do existir cultural, no movimento pendular natural entre o viver concentrado/ensimesmado e difuso/aberto. “O que a vida quer da gente é coragem” – rendo-me ao brilho sertanejo de Riobaldo/Rosa – entre as peripécias da vida sem perder o rumo. Há esse retorno no sentido de reinauguração do cerrado, dos lugares vívidos, a paisagem mais comemorada que relembrada. Aqui só me ocorrem os mistérios movidos a nostalgia.

Apuro lenhoso sabendo a pequi, esse entremeado filtrante de cascas, capins, folhas obscuras, ramos incertos, flores sucintas (há náguas análogas), azuis impositivos, luzes tardias, traços restantes, esboço cru encruado, verões pojados, nímias secas setembrinas, voo fugaz da perdiz, lodo escuro, terra fértil e austera, paredes enraizadas, lugares aos quais foi pedida licença de viver e resistir. A estrutura da obra se assenta exatamente como o cerrado mareal, aqui e ali circunscrito em ruas e estradas antigas ou dissimuladas no consentimento aos humanos naturais. Aqui só me ocorrem as veredas de buritis – nada mais espetacular na escala cerratense.

O artista/escritor/arquiteto é uma combinação do novo homem urbano de Goiás dos anos 50 com o que se fez modernista e voltou ao berço. O olhar moderno intelectual, maiormente arquitetônico, não quis e não precisou retificar as coisas tortas da vida na sabedoria dos lambaris. São chances, possibilidades, que muitos detém e não conseguem podem ou não conseguem agarrar e sustentar nos descaminhos da vida. Essa é uma habilidade que sustenta e proporciona os mais importantes legados humanos. É admirável.

Prá não dizer que não falei de arte em teoria, reitero: Todos os artistas são, a seu tempo, contemporâneos. A linguagem da arte se desvela na materialidade técnica e nas impressões e expressões virtuais, intencionais e incidentais a se atrair e repelir. São celebrações mais ou menos com­plexas e características da humanidade. É uma celebração intelectual e uma regra genérica que ordena e filtra escolhas e reconhecimentos. Resulta também em alguma ciência no uso de signos e símbolos, naturais e artificiais. Mas não é disso mesmo que estamos falando? Pode ser mas é muito melhor apreciar e assumir que estamos representados, acho até que retratados, em cada borda, em cada detalhe em cada conjunto de traços e pinceladas que aqui encontram uma síntese. Por enquanto.

Brasília/Goiás, abril de 2021.

O ARTISTA QUE VEIO DO OVO

Como são belas as obras de Elder Rocha Lima. E, por trás delas, quanta depuração técnica e dedicação ao trabalho. Quanta vivência. E estas exclamações, as faço sem o habitual ponto final que as indica graficamente.

É que, considerada a beleza inversamente proporcional à realidade que ela representa hoje em nosso país, na arte de Elder vemos que tem muitas coisas erradas. Não na pintura, por certo, mas na natureza e na aparente calmaria que ela retrata.

O desequilíbrio causado à harmonia planetária pela ação humana pode ser constatado na arte de diversas formas e em diferentes estilos. À sua maneira, cuidando do Cerrado, Elder não faz uma arte panfletária, querendo nos mostrar didática e explicitamente os males que causamos à nossa própria casa. Ele deixa a cada observador sua conclusão.

O artista Elder é sutil como um felino. Não tem pressa, pois sabe que está no caminho certo. “Acho ótimo deixar o trabalho descansando. Vou vendo os efeitos e retocando”.

Como loucos alienados, apressados e insensíveis, olhamos estas suas obras e fingimos que nada percebemos. Nem quando confrontados com os números de um anunciado caos climático esboçamos reações. Já seríamos uma civilização de zumbis? Espero que não. E uma das esperanças que nos resta é ver as obras do Elder. Contando com a arte para nos sensibilizar, talvez ainda tenhamos uma chance.

Talvez essa chance aumente quando passarmos a gostar mais de arte do que de carne. Pois, hoje, os seres humanos e o gado que criamos para nos alimentar formam 96% da massa de todos os mamíferos do planeta. Além disso, 70% de todas as aves que vivem hoje são domésticas, principalmente os frangos que vão para as panelas. Carne não vai faltar. Falta arte. Faltam mais Elderes.

Esta exposição é de uma beleza sem exclamação. Pois é feita para nos acordar. É uma mensagem visual em uma pequena garrafa vagando pelo vasto mar de nossa consciência. É um alento, mostrando que ainda temos tempo para resetar tudo e recomeçar. Quantos irão vê-la? Espero que o mundo inteiro.

A partir de uma cor, uma forma, uma luz, com um simples quadro na parede ilustra-se uma nova postura e, então, podemos fazer dos ecossistemas em que vivemos, somados uns aos outros, uma biosfera planetária protegida e saudável para todos, a começar do Cerrado que nos envolve e é pintado por Elder desde a longínqua década de 1970. É o básico de que precisamos. Nunca a arte foi tão urgente. E quem nos mostra isso é um mestre do alto de seus 93 anos: contra as taxas de extinção, essa exposição, estas obras, a arte e este artista.

Mal comparando, em Elder, cada obra tem a nobre missão de se tornar dose de uma vacina que fará de seus observadores anticorpos contra a exploração da natureza, a devastação do Cerrado e o mal que causamos ao Planeta. Já me vacinei.

Ah, sim, e o título?

Um dos mais marcantes momentos da vida artística de Elder se deu quando ele era apenas uma criança, brincando em sua cidade natal, no Largo do Moreira, onde no nº 2 morava Octo Marques.

Elder resolveu por conta própria e silenciosamente entrar naquela casa que vivia de portas abertas. Sobre uma pequena mesa no centro da sala algo chamou sua atenção. Bem mais que isso, na verdade. Ele ficou estupefato ao ver ali um ovo de ema detalhadamente pintado pelo dono da casa, um escritor, pintor e desenhista -e vereador nas horas vagas- que tinha na paisagem social e colonial vilaboense o seu tema principal.

Decerto, para essa epifania vieram a se somar as lições que seu pai lhe dava ao passear na natureza, detendo-se em cada nova espécime encontrada. O certo é que a partir daquele momento Elder sabia perfeitamente o que queria fazer na vida.

E é o que continua a fazer até hoje, já beirando seu centenário em contínua atividade, o artista de milhares de obras em diversas técnicas e suportes, de um sem número de exposições e de uma dezena de livros lançados, arquiteto e ex-professor de arquitetura, homenageado e reconhecido; que celebra em suas telas a junção da arquitetura e do meio ambiente para criar cenários afetivos e sentimentais só seus -e dividir com o mundo.

Não por acaso, tudo somado, Elder é um artista doutor Honoris Causa, título atribuído pela Pontifícia Universidade Católica às personalidades que se distinguem pelo saber e pela atuação em prol das artes, das ciências, da filosofia, das letras e do melhor entendimento entre os povos. Precisa falar mais?

Para leitura opcional.

Depois de sair de sua cidade natal ainda no transcurso de sua infância, Elder voltou há alguns anos atrás, na mocidade dos oitenta anos, para nela se aquietar serenamente, muito bem acompanhado e instalado em seu imponente ateliê residência, a partir do qual forma um triângulo de vida, arte e histórias com Brasília e Goiânia -e de onde divisa ultrapassar a linha centenária. É o ovo fechando seu círculo.

Px Silveira